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Esporte

Primeira medalhista olímpica do país conta saga da mãe e fala de machismo

No Dia da Mulher e perto dos 10 anos de bronze histórico, Ketleyn Quadros se reinventa rumo a Tóquio ao trocar o Minas pela Sogipa e relembra história com Maurren Maggi em Pequim 2008

Globo Esporte

08 de Março de 2018 - 08:41

Há 10 anos, Ketleyn Quadros eternizava seu nome no esporte brasileiro ao conquistar uma medalha nos Jogos Olímpicos de Pequim 2008. Um bronze com sabor de ouro, já que era a primeira vez que uma mulher do Brasil subia ao pódio olímpico em esportes individuais. Nessa década, muita coisa aconteceu. Mas o mais importante foi que a judoca conseguiu abrir caminho para as mulheres em seu esporte, tradicionalmente masculino.

Depois de Ketleyn, Sarah Menezes foi campeã olímpica em Londres 2012. No mesmo ano, Mayra Aguiar levou um bronze. Na Rio 2016, foi a vez de Rafaela Silva subir ao topo do pódio. Mayra voltou a ficar em terceiro lugar, agora na edição brasileira dos Jogos Olímpicos. E isso sem contar as conquistas em Mundiais.

- Às vezes me pego sem acreditar como passou 10 anos tão rápido, parece que foi ontem. Fico muito feliz. Sou muito grata por ter participado de uma Olimpíada, conquistado a minha medalha e mudado a configuração do judô feminino. A gente teve mais oportunidades dentro da nossa modalidade. Agora, temos várias campeãs mundiais, medalhistas e campeãs olímpicas. Me sinto feliz por ter participado desse processo. Se for olhar quanto o judô cresceu, quanto mudou... Na Olimpíada do Rio, foi carro-chefe.

Ou seja, aquela medalha ajudou a pavimentar um caminho vitorioso no judô feminino. Mais experiente, aos 30 anos, a brasiliense conversou com o GloboEsporte.com no Dia Internacional da Mulher, abriu seu baú de memórias e falou sobre machismo no esporte.

Ketleyn Quadros contou que, assim que entrou na seleção brasileira, acompanhava a luta das judocas mais velhas. Enquanto os homens viajavam para competições internacionais, as meninas, no máximo, ficavam no âmbito Pan-Americano. Segundo ela, as judocas "lutavam Olimpíadas sem nunca ter pego no quimono da adversária".

A brasiliense conta que, no sênior, viveu uma realidade melhor que as mulheres que a inspiraram, como Edinanci Silva, e se diz feliz por ter conseguido ajudar o judô feminino a evoluir.

- Não se acreditava no potencial feminino. No judô, no Brasil, temos costume de treinar todo mundo junto, era o mesmo técnico para homens e mulheres. Hoje o feminino está entre as cinco maiores potências do mundo. Lutamos para ter condições iguais. O diferencial, às vezes, é em questão de salário. Isso ainda existe. Existe tanto no esporte quanto fora dele. Eu acho que o que sofre no detalhe a modalidade é isso, mas em condições de treinamento, de competição, mudou muito, mas só mudou porque damos resultado - contou.

De fato, Jigoro Kano, fundador do judô, não pensou que sua obra poderia ser praticada por mulheres. Há registros, entretanto, de que o mestre Kano começou a ensinar a arte marcial para um grupo de mulheres lideradas por Kayatani Sueko de forma não-oficial na Kodokoan, primeira escola de judô, criada em 1882. Mas, oficialmente, só 40 anos depois foi criada a divisão feminina, chamada de JoshiBu.

O primeiro Mundial para mulheres só aconteceu em 1980. A Olimpíada de Seul, em 1988, teve o judô de forma experimental e, em 1992, nos Jogos de Barcelona, o judô feminino se tornou modalidade fixa. O masculino foi disputado pela primeira vez em Tóquio 1964.

A saga da mãe na China

Ketleyn contou que sua mãe, Rosimeire, é talvez o grande nome por trás da medalha de Pequim 2008, tirando sua avó, Marilda, que a levava nos treinamentos e buscava no colégio. Cabeleireira, dona Rosi trabalhava intensamente para ajudar a filha. Mal conseguia ver seus torneios já que, no sábado, o movimento do salão era ainda maior.

Aos 17 anos, quando a judoca se mudou ao lado de Érika Miranda e foi morar em uma república em Belo Horizonte para treinar, recebeu um apoio enorme. Mas a maior demonstração de amor viria anos depois, na edição chinesa dos Jogos. Rosimeire prometeu à filha que iria ver suas lutas ao vivo.

- Quando ela falou que ia para Pequim, não acreditei. Disse que amaria, mas ela não tinha nem passaporte. Ela e minha madrinha arrumaram. Mobilizaram os mercadinhos perto de casa, mercearia, colégio, fizeram rifas... Um mês antes saímos para aclimatação no Japão. Ela disse que estava arrumando o dinheiro da passagem. Eu não tinha como me comunicar com ela. No primeiro dia, os voluntários chamaram a técnica e disseram que minha mãe estava lá fora. Quando eu saí, foi muita alegria, muita emoção. Eu vi que a determinação, essa garra, vontade que eu tenho, não foi à toa - comentou.

A mãe de Ketleyn ficou hospedada em um hotel com sua madrinha e saiu com uma plaquinha em inglês escrito que queria assistir à filha e não tinha ingresso. Ela ficou em frente à bilheteria até que um jornalista chinês se sensibilizou pela história e a ajudou a escrever o recado em chinês, pois, naquela época, poucas pessoas falavam inglês por lá.

- Várias pessoas iam passando para falar que, se tivesse ingresso, vendiam para ela. Só sei que uma hora ela conseguiu comprar o ingresso. O jornalista acompanhou elas em tudo. Vi minha mãe no dia da Sarah (Menezes). Eu só lutaria no 3º dia. Minha mãe me tranquilizou. Fiquei muito feliz de ter visto ela na competição. Lembro até de um vestido que tinha comprado para ela em uma feirinha. Quando eu a vi com o vestido, com a faixa, me senti confiante. Foi um dia mágico, abençoado. Se você me perguntar em detalhes, nem lembro. Parece que foi um sonho.

Sorte para Maurren Maggi

No dia 11 de agosto de 2008, Ketleyn Quadros se tornou a primeira mulher do Brasil a conquistar uma medalha olímpica em esportes individuais com seu bronze. 11 dias depois, em 22 de agosto, Maurren Maggi acabou levando um ouro no salto em distância. Mas o que nem todos sabem é que Ketleyn deu sorte para Maurren.

Logo depois de conquistar sua medalha, cansada após fazer exame antidoping, dar inúmeras entrevistas, participar de coletiva e arrumar tudo, Ketleyn seguiu para o prédio onde estava hospedada a seleção brasileira de judô na Vila Olímpica. Maurren Maggi estava parada em frente ao edifício onde estava hospedada. Ela parabenizou a judoca e pediu para ver a medalha. Deu sorte.

- Ela pegou, ficou super feliz. Dias depois, ela ganhou. Voltou com a dela de campeã, mais que merecido. Fiquei muito feliz. A gente só se encontrou por lá. Depois que ela correu e ganhou a medalha dela, ela ficou por conta só de imprensa. Quase não pisei o pé na Vila mais. A gente não se viu mais. Foi um caso atípico, porque a gente não se conhecia, mas foi muito legal. Deu sorte para ela, foi muito legal.

Esperança por nova Olimpíada e carreira reinventada

Em Londres 2012, Ketleyn perdeu a vaga para Rafaela Silva, que acabou se tornando campeã olímpica na categoria -57kg na Rio 2016. Nos Jogos do Rio de Janeiro, viu Mariana Silva se classificar no finzinho da corrida olímpica. Ou seja, desde que foi bronze em Pequim 2008, a brasiliense não conseguiu disputar os Jogos, fato que ela espera mudar daqui a dois anos, em Tóquio 2020.

Para isso, a atleta está "reinventando" sua carreira. Depois de 12 anos de Minas Tênis Clube, ela fechou com a Sogipa. Deixou Belo Horizonte para seguir para Porto Alegre de olho em uma mudança total que, quem sabe, pode ser o que faltava. A propósito, não é só a nova participação nos Jogos Olímpicos que enche os olhos de Ketleyn.

A brasiliense sonha com uma medalha no Mundial que, esse ano, acontece em Baku, no Azerbaijão. A Sogipa, segundo ela, chamou a atenção pois têm João Derly e Mayra Aguiar como bicampeões mundiais, e nomes da seleção brasileira, como Érika MIranda, Felipe Kitadai e Maria Portela.

- É uma referência para mim pensando em ciclo olímpico, em 2020. Chegou o momento de mudança. É um dos principais clubes na modalidade, temos o maior número de atletas na seleção. Apesar de o judô ser um esporte individual, não conseguimos treinar sozinhos e é preciso ter companheiros que te tirem da zona de conforto. Minha mudança foi para conquistar uma medalha em Mundial a curto prazo, ficar na seleção e, no futuro, chegar a mais uma Olimpíada. Estou me reinventando, a mudança não foi fácil, mas tenho certeza que é para melhor - comentou.

No currículo, Ketleyn foi ouro na Universíade Kazan (2013), ganhou os GPs de - Tashkent e Almaty (2013) e Cancun (2017), levou a prata no GS de Moscou (2013) e ficou com o bronze no GP de Dusseldorf (2014) e no GS de Abu Dhabi (2016) e três terceiros lugares no Pan-Americano (2008, 2013 e 2014).