Brasil
Entidades apontam falhas em sistema de controle de armas
O Instituto Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública avaliam que a falta de informações unificadas impede o rastreamento.
G1
23 de Julho de 2022 - 07:36
O Instituto Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam falhas no sistema de controle de armas no Brasil que permitem a compra de pistolas e fuzis por criminosos. As entidades avaliam que a falta de informações unificadas impede o rastreamento, a fiscalização e a investigação de crimes com armas de fogo.
Quase 4,5 milhões de armas registradas em nome de pessoas físicas. Os registros de colecionador, atirador desportivo e caçador - o chamado CAC, concedido pelo Exército - também não param de crescer. Desde 2019, 550 mil pessoas obtiveram o certificado. Um aumento de 307% em relação ao total de CACs que existiam até 2018. Ou ainda uma média de 424 licenças emitidas por dia para usar armas no país.
O presidente Jair Bolsonaro, que defende a flexibilização do acesso a armas, já editou 17 decretos e 19 portarias com essa finalidade.
Entre os documentos exigidos pelo Exército para um cidadão conseguir o registro de caçador, atirador desportivo e colecionador está uma declaração de idoneidade, que pode ser em primeira pessoa, simples assim: “Eu, fulano de tal, documento tal, declaro que possuo bons antecedentes e não respondo a nenhum inquérito policial ou processo criminal”. O problema, segundo os especialistas ouvidos pelo Jornal Nacional, é que o Exército não verifica se o que está escrito nessa declaração é verdade.
“Não há uma checagem aí de uma autenticidade dos documentos que estão sendo enviados e não há uma consulta do próprio Exército tomando a iniciativa de entrar nos tribunais de Justiça e checar se aquela pessoa, se aquele CPF, tem alguma inconsistência. Então, o que a gente está vendo é uma série de escândalos de CACs envolvidos nas páginas policiais se registrando com documentos falsos. É uma licença que dá uma série de privilégios para acessar um número muito grande de armas e munições”, afirma Bruno Langeani, gerente do Instituto Sou da Paz.
“Não tem sentido, nos dias de hoje, com todas as informações que a gente tem sobre o desvio de arma legal para a ilegalidade, com a existência de processos informatizados, ou seja, é possível consultar sem ter muito trabalho, não tem cabimento que o Exército não faça essa checagem mínima”, diz Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A lei brasileira proíbe que uma pessoa que responde a processo criminal ou inquérito policial seja um CAC. Casos recentes mostram falhas na fiscalização.
Em julho, em Uberaba, Minas Gerais, a Polícia Federal apreendeu armas de um suspeito de pertencer a uma facção criminosa. A investigação descobriu que ele conseguiu registro de CAC mesmo respondendo a 16 processos ou inquéritos policiais. Entre os crimes, estão homicídio qualificado, roubo e tráfico de drogas. Com a licença de CAC, o suspeito comprou um fuzil, duas pistolas e outras quatro armas.
Outro exemplo vem de Uberlândia, também em Minas. Rodrigo Luiz Parreira tinha registro de CAC. Mas, segundo o Ministério Público Federal, ele mentiu ao descrever na declaração de idoneidade que não respondia "a nenhum processo criminal", e, por isso, foi preso no dia 2 de julho. Na terça-feira (19), deixou a prisão e vai responder ao crime em liberdade.
Rodrigo havia sido condenado por estelionato e respondia a três processos por lesão corporal, organização criminosa e roubo. Como para conseguir o registro é necessário apresentar certidões de antecedentes criminais, ele tirou a certidão em outro município, onde não respondia por nenhum crime. Depois que obteve o registro do Exército, Rodrigo Luiz Parreira ainda acumulou outros seis processos criminais. Com o registro de CAC, ele comprou dois fuzis - um com capacidade de perfurar carros blindados - e uma pistola semiautomática.
No Brasil, o controle de armas é feito em dois bancos de dados: o Sinarm (Sistema Nacional de Armas), vinculado à Polícia Federal, com acesso de todas as forças policiais; e o Sigma (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), administrado pelo Exército, que não permite a consulta de todas as autoridades policiais.
Segundo o Instituto Sou da Paz e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a falta de transparência do Exército com relação aos CACs dificulta a fiscalização.
"Para dar um exemplo, um policial que para alguém na estrada, ele pega o documento do carro, ele consegue checar na hora se aquele carro é roubado, se o licenciamento está em dia. Quando se apresenta uma carteirinha do Exército de CAC, ele não consegue consultar se aquele documento é autêntico, ele não consegue consultar se aquela arma de fato está ligada àquela pessoa”, afirma Bruno Langeani.
Também não é possível conferir, por exemplo, se uma pessoa acusada de violência doméstica ou outro crime possui registro de CAC ou arma em seu nome.
“Um delegado hoje que investiga homicídio não tem acesso ao banco de dados do Exército. Um promotor que investiga crime organizado não tem acesso direto ao banco do Exército. Então, obviamente, isso cria um problema grave de fiscalização e de segurança pública no país”, diz Langeani.
O Fórum de Segurança Pública se baseia na experiência de outros países para propor um caminho.
“O Fórum vem defendendo, publicamente, a ideia da criação de uma agência civil de controle de armas. Está na hora de repensar esse sistema de controle, fortalecer esse sistema de controle. E não dá para fazer isso tendo esse sistema bipartido: PF e Exército. É um modelo que já existe em outros países, a gente tem defendido esse modelo como o modelo... Talvez esteja na hora de repensar”, afirma Isabel Figueiredo.
Em nota, o Exército brasileiro declarou que a responsabilidade pelas informações de idoneidade e documentação sobre os antecedentes criminais é do cidadão que pede o registro; e que verifica os documentos nos tribunais por meio de uma chave eletrônica de autenticação.
O Exército afirma ainda que no caso de Rodrigo Parreira, a documentação foi verificada conforme prevê a legislação e que, sendo confirmada uma irregularidade, serão adotadas as sanções previstas em lei.
O Exército afirma que a lista de CACs não é pública por questões de segurança e em respeito à privacidade das pessoas, mas que deu acesso à Polícia Federal e está em fase de integração com a Secretaria Nacional de Segurança. Ainda segundo o Exército, desde julho de 2020, os certificados de CAC são emitidos com código QR para checagem da documentação.
O advogado de Rodrigo Parreira disse que a declaração de idoneidade dele foi feita com base na certidão negativa de crimes da comarca da cidade de Prata, em Minas Gerais, onde ele morava na época.