Brasil
Por que o piso salarial da enfermagem foi barrado? Entenda a decisão do STF
G1
16 de Setembro de 2022 - 07:28
O Supremo Tribunal Federal (STF) manteve suspensa a lei que criou o piso salarial dos profissionais de enfermagem. O julgamento da Corte, encerrado na quinta-feira (15), seguiu a decisão individual do ministro Luís Roberto Barroso, no início do mês, atendendo a uma ação apresentada pela Confederação Nacional de Saúde, Hospitais e Estabelecimentos e Serviços (CNSaúde).
A nova legislação– que permanece suspensa – institui o piso salarial nacional para enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e parteiras, ou seja, o valor mínimo a ser pago para esses profissionais.
Os pisos estabelecidos pela lei são:
- enfermeiros: R$ 4.750
- técnicos de enfermagem: 70% do piso, chegando a R$ 3.325
- auxiliares e parteiras: 50% do valor, R$ 2.375
Nesse cenário, o g1 ouviu especialistas em orçamento público e saúde para analisar possíveis impactos da lei (confira mais abaixo).
Qual é a discussão?
O centro da discussão está na equação entre a valorização dos profissionais da enfermagem e os impactos financeiros para instituições de saúde, estados e municípios.
Também são debatidas as fontes de custeio – ou seja, de onde virá esse dinheiro. É um dos destaques que Barroso considerou na liminar que suspendeu a aplicação imediata da lei.
Para o ministro, o Congresso Nacional e o governo federal não “cuidaram” desse ponto, e deu o prazo de 60 dias para entes públicos e privados da área da saúde esclarecerem o impacto financeiro, os riscos para empregabilidade no setor e eventual redução na qualidade dos serviços.
O que argumentam as entidades envolvidas
A favor do piso:
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), o Conselho Nacional de Saúde (CNS) – vinculado ao Ministério da Saúde – e sindicatos da categoria consideram “economicamente viável” o piso da enfermagem aprovado.
Estudo elaborado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e citado pelas entidades aponta que, atualmente:
- 56% dos enfermeiros recebem abaixo do piso de R$ 4.750,00;
- 85% dos técnicos de enfermagem recebem abaixo do piso de R$ 3.325,00;
- 52% dos auxiliares de enfermagem recebem abaixo do piso de R$ 2.375,00.
Sobre os reflexos da lei, o estudo indica que:
- o impacto adicional para todos os setores (público, privado e instituições filantrópicas) seria de R$ 958,3 milhões mensais, ou R$ 15,8 bilhões anuais;
- o impacto médio adicional anual seria de 2,08% da massa salarial do conjunto dos setores analisados, já considerando os encargos sociais;
O estudo não trata, no entanto, de onde viriam os recursos para esses pagamentos adicionais.
Contra o piso:
A CNSaúde, a Confederação das Santas Casas de Misericórdia, Hospitais e Entidades Filantrópicas (CMB) e outras entidades do setor alegam que, com os impactos da lei, as folhas de pagamento vão crescer, em média, em 60% – o que, de acordo com elas, pode causar:
- extinção de mais de 83 mil postos de trabalho;
- fechamento de mais de 20 mil leitos;
- aumento em 12% no valor dos planos de saúde.
A CMB, que representa os hospitais filantrópicos, prevê um acréscimo de mais de R$ 6,3 bilhões por ano nos custos das instituições.
Já a Confederação Nacional de Municípios (CNM) divulgou um estudo que aponta impacto de R$ 10,5 bilhões ao ano. Com isso, a entidade prevê:
- demissão de um quarto dos 143,3 mil profissionais de enfermagem ligados à Estratégia de Saúde da Família pelas prefeituras;
- desassistência de 35 milhões de brasileiros.
O que acontece agora?
Após a decisão liminar, o ministro Barroso se reuniu com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), para discutir uma saída.
O encontro foi fechado à imprensa e, segundo material divulgado pelo STF, três possibilidades de financiamento para o piso da enfermagem foram levantadas:
- a correção da tabela do SUS;
- a desoneração da folha de pagamentos do setor;
- a compensação da dívida dos estados com a União.
De onde tirar dinheiro?
O economista e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) Carlos Octávio Ocké-Reis, especializado em Saúde Pública, é a favor da aplicação do piso.
Ele aponta que, dentre as alternativas de custeio levantadas por Pacheco e Barroso, a desoneração da folha de pagamentos do setor não é uma saída sustentável.
“É fundamental a previsão de novas regras fiscais e de financiamento do SUS, que sejam capazes de inverter o atual quadro no qual, apesar de termos um sistema universal e integral, mais da metade dos gastos em saúde é privado no Brasil”, explica.
Ocké-Reis ressalta que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2023 tirou do SUS o controle de cerca de R$ 10 bilhões do orçamento, “uma vez que parcela do piso de saúde está alocada nas emendas de relator”.
“Desse modo, defendo que, emergencialmente, esses recursos do ‘orçamento secreto’ sejam transferidos da União para estados e municípios custearem o piso da enfermagem”, diz.
O especialista aponta que a União vem reduzindo sua participação e, hoje, responde por apenas 42% das despesas na saúde, sobrecarregando estados e, especialmente, municípios, na destinação de recursos para o SUS.
Planos de saúde e hospitais filantrópicos
Para o especialista, existe um mercado de planos de saúde “mal regulado”, apesar de leis e instituições com essa finalidade.
Para Ocké-Reis, as organizações filantrópicas funcionam hoje de forma semelhante ao setor privado, “maximizando o lucro”, “movidas por interesses particulares” e “ampliando as desigualdades de acesso e utilização do sistema público de saúde”.
“Desse modo, precisamos fortalecer a participação do Estado na rede do SUS, até porque a rede filantrópica foi tomada pelas corporações, servindo de base material e tecnológica para o ‘empresariamento’ médico por meio da dupla porta de entrada”, diz.
Outros impactos
O professor Matheus Delbon, coordenador do curso Gerente de Cidades da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), apesar de a favor da valorização dos profissionais da saúde, questiona a medida tal como foi tomada.
Para o especialista, a aplicação do piso pode resultar, sim, em reajuste nos planos de saúde e demissões.
“[As instituições] vão parar para pensar formas de reduzir os quadros, para fazer jus aos novos pagamentos”, diz. “Pode gerar um nível de trabalho ainda pior, embora melhor remunerado.”
Ele alerta também para a retração nos investimentos pelo setor privado. “A médio prazo é algo extremamente nocivo, inclusive com esvaziamento da atividade. Pessoas que pensam em abrir uma clínica ou um hospital vão pra outras áreas de investimento, o que pode gerar uma escassez na oferta do serviço.”
'Cobertor curto'
Tecnicamente, é muito fácil decretar a inconstitucionalidade da lei, segundo Delbon. “Você está aumentando a despesa sem identificar a receita”, diz, acrescentando que “não existe fórmula mágica”.
“Se corrigir a tabela SUS, vai drenar recursos de outras áreas. Então, terá guerra orçamentária. Se trabalhar com desoneração da folha, vai aumentar o déficit previdenciário, tendo que ampliar, daqui a alguns anos, a idade para se aposentar. Ou, então, onerar outro setor”, explica Delbon.
Para o especialista, no longo prazo o piso salarial pode ficar defasado em meio à inflação, o que pode ser ruim para a categoria. Ele aponta também perdas para o sistema como um todo.
“Recursos de investimentos vão ser drenados para a folha de pagamento. Isso vai diminuir o grau de investimento e, a médio prazo, haverá a precarização do sistema de saúde”, continua.
Oferta x demanda
Como alternativa, o professor sinaliza uma valorização no médio ou longo prazo, mas que preserve a capacidade de investimento das entidades hospitalares.
“Outra forma de aumentar salários a médio prazo é aumentar a oferta. Se você amplia a oferta de hospitais, os melhores profissionais começam a ser disputados. Então, esse aumento vem muito da oferta e da demanda”, diz, acrescentando que a criação do piso, sendo um aumento não linear, irá prejudicar novos profissionais no ingresso no mercado de trabalho.
Diferenças regionais
O professor Rudi Rocha, da FGV-EAESP, favorável à valorização dos profissionais, alerta, também, para as distorções regionais do piso.
“O Brasil é muito heterogêneo. O mercado de trabalho dos profissionais de saúde é totalmente flexível”, diz, acrescentando que, quando se estabelece um piso fixo para todo o país, naturalmente são geradas distorções.
“O piso, em uma determinada localidade ou para uma determinada instituição, não vai fazer a menor diferença. Eventualmente, para outras, haverá reajuste factível. Já para outras pode haver uma grande carga no sentido dos custos”, diz.
Ele se refere a regiões remotas que, eventualmente, já pagam além do piso, justamente para retrair esses profissionais.
“Portanto, uma mesma régua para o país inteiro pode ser injusto com profissionais da enfermagem que deveriam receber até mais que isso, dada a localidade”, finaliza.