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"Acho que tem que se prever um programa de pagamento de incentivo a serviços ambientais"

Correio do Estado

26 de Agosto de 2023 - 09:50

"Acho que tem que se prever um programa de pagamento de incentivo a serviços ambientais"

O Pantanal tem sido destaque na pauta sul-mato-grossense e brasileira. Na última semana, ocorreu o maior evento de debates sobre a conservação do bioma, reunindo autoridades, especialistas, pesquisadores e representantes da sociedade civil para discutir possíveis soluções para um futuro sustentável do Pantanal.

Entre os especialistas presentes no evento estava Leonardo Gomes, diretor-executivo do Instituto SOS Pantanal, que discursou no fórum e relata ao Correio do Estado que Mato Grosso do Sul está em um momento crucial para decidir sobre o futuro do Pantanal e preservar as características únicas do bioma.

Neste mês, o governo do Estado se prontificou a rever o Decreto Estadual n° 14.273, que permitia o desmatamento de até 60% da vegetação nativa (não arbórea) e de até 50% das árvores nas áreas de fazenda, enquanto a Embrapa aponta em nota técnica que a supressão de vegetação nativa deveria ser de até 35%.

Enquanto isso, Leonardo aponta que Mato Grosso, estado vizinho, tem uma lei ambiental que é embasada em critérios científicos e foi revisada no ano passado.

Além disso, Gomes também afirma que entende as mudanças na economia e defende, inclusive, a criação de incentivos financeiros para produtores que ajudarem a preservar o bioma.

“Acho que tem sim que se prever um programa de pagamento de serviços ambientais, de incentivos, porque você tem uma pecuária de menor impacto, menor emissão, menor desmatamento do que na média do Brasil”, detalha. Confira mais na entrevista.

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O governo do Estado suspendeu as licenças de desmatamento do Pantanal para a elaboração de uma nova Lei do Pantanal. Que regras o SOS Pantanal considera essenciais para serem impostas?

A gente vai recomendar formalmente cinco pontos. Acho que o principal objeto dessa discussão toda é observar o que coloca o artigo 10 do Código Florestal, que por ser área de uso irrestrito os estados podem regulamentar, principalmente o licenciamento, considerando as recomendações dos institutos oficiais de pesquisa.

Então, precisa ser um processo embasado tecnicamente, principalmente no que tange às restrições, ao limite de supressão, isso tudo precisa estar embasado.

A gente hoje consegue imaginar algumas possibilidades de fazer isso, lá atrás foi apresentado um estudo muito claro e bem embasado da Embrapa, que não foi considerado.

O que estava no decreto não reflete o embasamento teórico que a Embrapa apresentou, que, a meu ver, é uma das instituições mais qualificadas, se não a mais, para fazer esse processo.

O outro ponto é a revisão do processo de licenciamento, à luz da metodologia que hoje a gente considera mais completa, e inclusive foi recomendada pelo Ministério do Meio Ambiente, que é a avaliação ambiental estratégica, que é você avaliar não só em nível de propriedade, mas em nível também de paisagem, os efeitos cinéticos, os efeitos que você vai ter em uma supressão ou um empreendimento, em uma escala mais ampla.

Verificar qual o efeito daquilo na vegetação, na fauna, até mesmo em cursos d’água, e acompanhar os efeitos a posteriori também.

O que a gente tem visto é que muitas vezes existem impactos subsequentes, por exemplo, a degradação de campos.

A gente tem um dado no MapBiomas que mais de 80% dos campos do Pantanal são degradados, em nível moderado ou severo, porque você faz a substituição da gramínea, ok, dentro da legislação, mas depois não mantém essa gramínea e ela vai se degradando ao longo do tempo, até que perde a capacidade de suporte até para a pecuária. Então, hoje o rito de licenciamento não é adaptado para o Pantanal, esse é o ponto.

E a gente tem um outro ponto, que é a vedação a atividades intensivas, principalmente a monocultura de soja e de milho, que a gente entende que não são atividades compatíveis com a planície.

São culturas que exigem adaptações, intervenções, provavelmente irreversíveis. Você precisa drenar as áreas, precisa fazer uso de fertilizante, uso de defensivo. Aí precisa de uma logística muito intensiva para tirar essa soja de lá. A gente entende que seria um caminho sem volta ter a soja expandindo.

O próprio governador assumiu que há cerca de 2 mil hectares de soja no Pantanal. A gente tem várias dessas áreas identificadas, com coordenadas, foto de sobrevoo, tudo isso, que a gente validou os dados e mapeou.

Então, por enquanto é pequeno, né? Mas isso não pode ser um argumento de tolerância, porque a soja também não era uma realidade no Cerrado, por exemplo, e hoje basicamente domina o Cerrado inteiro.

Além dessas questões e da participação da sociedade civil nesse debate, a gente tem que integrar a questão das nascentes e das cabeceiras.

O Pantanal é uma área úmida, ele é um bioma que está intrinsecamente ligado com o que acontece no planalto, no nível da Bacia do Alto Paraguai, então, se a gente não tiver uma estratégia para conservar as cabeceiras, os recursos hídricos que tornam o Pantanal uma área úmida, que mantém suas características ecológicas, a gente vai perder a oportunidade e vai ter também uma degradação do Pantanal, a médio e a longo prazo. Se a gente fizer uma lei só para a planície, a gente não vai estar defendendo o bioma.

Relatório do Ministério Público diz que chamaram a Esalq [Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz] para fazer esse relatório, depois a própria Esalq disse que não foi bem assim. E o decreto autorizava até 60% de desmatamento, sendo que a Embrapa falava em torno de 35%. Como vocês veem esse debate entre porcentagens diferentes? Vocês acreditam que tem de ser até menos do que a Embrapa fala?

A recomendação é que seja revisado esse estudo da Embrapa. Ela própria coloca que, especialmente para a parte de campos alagáveis, seja revisado o estudo dali há cinco anos, e isso já tem nove anos.

Então, ele precisaria, de fato, ser revisado, porque o Pantanal tem essa realidade dinâmica, o desmatamento aumentou muito, você tem um ciclo plurianual de seca e cheia que tem alterado significativamente.

Por mais que a gente tenha tido água esse ano, a tendência é de seca nos últimos anos. Então, a primeira recomendação seria que se revisasse, que se solicitasse à Embrapa um novo estudo, para esses mesmos princípios metodológicos.

O estudo da Embrapa tende a ser um estudo completo, que vai olhar a viabilidade da pecuária e vai olhar também a capacidade de suporte ecológico, a manutenção da diversidade ecológica mínima para manter o Pantanal com as suas características.

{Perfil}
Leonardo Gomes 

Psicólogo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com MBA em Negócios Socioambientais pela Escas/IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas. Tem 15 anos de experiência no terceiro setor, tendo atuado com programas no Brasil e em outros países da América Latina. Atualmente é diretor-executivo do Instituto SOS Pantanal, onde atua há quatro anos.

Ele [o estudo da Esalq] foi contratado diretamente com o professor Sérgio Desenho, que é uma referência na área agropecuária. O título dele traz a palavra ecologicamente, tem que confirmar o tema exato, mas não tem nada de ambiental.

Absolutamente nada. Inclusive, essa é a resposta do próprio professor em e-mail que a gente teve acesso, colocando que o estudo é puramente econômico.

Então, esse argumento de que você pega o número da Embrapa, pega o número do Sérgio Desenho e faz a média não é válido, porque esse estudo não está colocando a viabilidade ecológica.

E como a gente também viu em Mato Grosso, a gente entende que a Embrapa tem toda a condição de atender essa demanda.

Como aliar a economia e a preservação do bioma?

Essa resposta é fácil, e o pantaneiro já tem a resposta. Você tem esse equilíbrio ao longo dos últimos mais de 200 anos, e você tem de fato o bioma com 81% da sua vegetação original conservada.

Então, existe um caminho, o pantaneiro sabe desse caminho. A grande questão é que a realidade social econômica tem mudado, então você tem propriedades cada vez menores, e são necessárias novas alternativas para esse produtor.

"Como que você incentiva que o produtor mantenha boas práticas adaptadas para o Pantanal e continue sendo bem remunerado? Por isso, acho que tem sim que se prever um programa de pagamento de serviços ambientais, de incentivos, porque você tem uma pecuária de menor impacto”
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“Mato Grosso fez 
esse processo lá em 2008. Eles têm uma lei estadual embasada em critérios técnicos” 

Porque se antes você fazia a pecuária em uma área de 30 mil, 50 mil hectares, hoje estamos falando de áreas de 5 mil, 10 mil hectares, que são justamente as subdivisões do processo natural de sucessão desses proprietários da atividade familiar da pecuária.

Então, você tem tanto essa subdivisão como também a entrada de novos atores e novas figuras no Pantanal, vindos de fora, com uma cultura diferente, querendo um retorno mais rápido, sem entender que você tem que respeitar, no Pantanal, os ciclos.

Você vai ter atividades diferentes na seca e na cheia, você precisa trabalhar muitas vezes o gado em regiões diferentes do Pantanal.

Então, eu vejo que existe um conhecimento tradicional de como lidar com a produção na pecuária pantaneira de maneira equilibrada com a conservação ambiental, ao mesmo tempo você tem uma realidade nova do mundo, que demanda uma produtividade, uma competitividade muito grande, principalmente do Cerrado em relação à pecuária. Eu acho que são pontos importantes a serem considerados.

Como que você incentiva que o produtor mantenha boas práticas adaptadas para o Pantanal e continue sendo bem remunerado?

Por isso, acho que tem sim que se prever um programa de pagamento de serviços ambientais, de incentivos, porque você tem uma pecuária de menor impacto, menor emissão, menor desmatamento do que na média do Brasil.

Então, acho que justamente essa lei é o momento para reconhecer e incentivar isso, e não tentar impor o modelo de outros biomas no Pantanal.

Esse acho que é o grande ponto que está em debate. A gente não tem que flexibilizar o Pantanal a ponto de imaginar que ele vai ter as características de produção do Cerrado, de outras regiões.

Pelo contrário, a gente tem que entender o mérito, a vocação da pecuária no Pantanal, e como é que a gente pode trabalhar para que ela continue progredindo, se desenvolvendo, nas mesmas premissas.

Acho que esse é o grande ponto, e tem um ponto interessante que a gente tem conversado com muitas embaixadas, com consulados do mundo inteiro, e eles ficam muito curiosos para entender: como é que você tem um bioma, o Pantanal, que tem mais de 80% da vegetação nativa e tem a pecuária extensiva em praticamente todas as regiões?

Como é que funciona essa relação? A gente costuma falar que a pecuária, no geral, é aliada da conservação, ela tem uma importância econômica, ecológica e cultural única nesse bioma, e temos a possibilidade de ter um case nacional de boas práticas, de uma pecuária tanto orgânica como de baixa emissão de carbono.

Há um programa superinteressante em Mato Grosso, por exemplo, que faria todo o sentido a gente trazer para cá, que é o Fazenda Pantaneira Sustentável, que segue indicadores sociais, econômicos e ecológicos para produção pecuária no Pantanal.

Caso a vedação da soja no Pantanal não seja feita, o licenciamento ambiental é imprescindível nesse caso?

Com certeza. [É preciso] avaliação ambiental estratégica, impactos sinergéticos em fauna e flora, você tem que ter um processo muito rigoroso, para conseguir acompanhar os impactos posteriores disso.

Você vai ter toda uma cadeia de eventos a partir daquela nova atividade, que precisam ser avaliados e contemplados no processo de licenciamento. Precisa ser muito mais embasado tecnicamente.

O que a gente está falando é qual é de fato o impacto que aquela atividade econômica vai ter ao longo do tempo, tanto com o uso do defensivo, do fertilizante, como da logística. É um processo muito mais profundo.
 
Você considera positiva essa roda de discussão entre fazendeiros, ONGs que atuam na preservação do bioma e governo do Estado sobre o Pantanal? Espera que essa lei consiga resolver os problemas existentes na legislação atual?

O debate é saudável, é necessário, algum nível de divergência é esperado quando se tem objetivos e realidades muito diferentes sendo agrupados na mesma discussão, mas o primeiro ponto foi uma decisão corajosa, importante e necessária, para que a gente tenha um ambiente de governança e segurança jurídica adequado no Pantanal.

Acho que o que antecede esse momento é uma obrigação constitucional, de você ter uma legislação para o Pantanal, e depois vem o Código Florestal.

Na ausência dessa legislação, os estados podem legislar embasados em critérios técnicos científicos, e aí Mato Grosso fez esse processo lá em 2008 e revisou agora.

Eles têm uma lei estadual embasada em critérios técnicos, e o que a gente tinha aqui era um decreto, claramente não embasado em critérios técnico-científicos, como várias instituições apontaram, o próprio Instituto SOS Pantanal, o Ministério Público, o Ministério do Meio Ambiente, tem notas técnicas muito bem embasadas mostrando isso, que o regramento aqui, que é um decreto, não era suficiente para fazer essa proteção.

Nessa nova dinâmica que a gente tem observado, social, econômica, ecológica, ele [o decreto] foi se tornando mais e mais obsoleto, então essa discussão era necessária, e a gente tem a expectativa, sim, de que os principais desafios e ameaças do Pantanal sejam contemplados nessa legislação e sejam endereçados de alguma forma.