Mato Grosso do Sul
Em Amambai, contaminação por agrotóxicos ocorre por via aérea
Correio do Estado
06 de Junho de 2023 - 08:55
A contaminação de indígenas da etnia guarani-kaiowá por agrotóxicos não se resume apenas à região de Dourados, onde uma população de 13 mil indígenas, moradores das aldeias Jaguapiru e Bororo, está exposto aos defensivos agrícolas e suas consequências, conforme denunciou ontem o Correio do Estado. Em Amambai, em aldeias indígenas e perto de retomadas, o problema também existe.
É o que relata o líder guarani-kaiowá Daniel Lemes Vasques. Uma das regiões onde o problema é mais crônico, segundo ele, é na retomada Guapoy Mirim Tujury. Conforme Vasques, o lançamento dos defensivos agrícolas é feito por aviões ao lado dessa retomada, nome de acampamentos montados em áreas reivindicadas pelas populações indígenas, mas ainda não homologadas.
“Como o milho está verde para a secagem, eles passam de avião em cima da própria reserva para secá-lo, e o cheiro é muito forte e se espalha por toda a retomada”, conta o indígena. “Os idosos, que têm imunidade fraca, passam mal com o cheiro do veneno, e estamos questionando isso”, afirma o líder guarani-kaiowá da região de Amambai.
Vasques ressalta que já houve casos em que teve de levar crianças e idosos para o hospital por causa do agrotóxico. “Foi um idoso que acabou passando mal. O veneno veio do avião. Era um vento que ia para o sul que trazia um cheiro muito forte”, descreve.
Casos semelhantes aos relatados por Vasques estão em poder do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e comporão um dossiê que será entregue para as autoridades federais, como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério dos Povos Indígenas.
Denúncia
Na edição de ontem, o Correio do Estado denunciou a exposição de indígenas das aldeias Jaguapiru e Bororo, em Dourados, à contaminação por agrotóxicos até mesmo na Fazenda Caiuaná, propriedade da Missão Evangélica Caiuá, que está arrendada há décadas para o plantio de soja e milho para produtores rurais da cidade.
A Fazenda Caiuaná, um dos vetores do problema, tem 384 hectares e foi idealizada no século passado para ser uma escola rural para indígenas.
Por ironia do destino, a propriedade da missão evangélica que tem por objetivo evangelizar e amparar a população guarani-kaiowá tem uma área muito parecida com a Fazenda do Inho, em Rio Brilhante, imóvel rural ocupado por indígenas guarani-kaiowá que reivindicam a demarcação e a criação de uma reserva no local.
Voltando às aldeias Jaguapiru e Bororo, que são alcançadas pela zona urbana de Dourados, há nelas recorrentes mortes de animais dos indígenas. A queixa dos guarani-kaiowá é que os defensivos agrícolas teriam causado cegueira na moradora da aldeia Jaguapiru Elza Gonçalves Benites, de 72 anos.
A Fazenda Caiuaná está localizada em frente à aldeia Bororo, na rodovia MS-156, que liga as cidades de Dourados e Itaporã.
Com um contrato de arrendamento ativo desde 2018, a propriedade gerou uma renda de R$ 1,34 milhão no ano passado, resultado da colheita de 7.864 sacas de soja repassadas pelos arrendatários.
A fazenda já havia sido alvo de investigação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por usar agrotóxico proibido no Brasil contrabandeado do Paraguai. Em 2015, o funcionário de um ex-arrendatário foi condenado a dois anos de prisão.
Agora, denúncias de contaminação por agrotóxicos oriundos dessas lavouras partem não só dos indígenas, mas também de entidades ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU).
A subsecretária-geral e assessora especial para a Prevenção do Genocídio da ONU, Alice Wairimu Nderitu, esteve em maio nas aldeias Jaguapiru e Bororo, vizinhas à fazenda da Missão Evangélica Caiuá.
Além da pobreza extrema e dos casos de prisões ilegais a que os indígenas são submetidos, ela também relatou contaminação de guarani-kaiowá por agrotóxicos.
“Agricultores pulverizam agrotóxicos nocivos em suas lavouras, que são inalados pelos guarani-kaiowá, o que causa sérios problemas de saúde na população, incluindo mortes de crianças”, acusa a subsecretária da ONU.
Ela não chegou a citar a Missão Evangélica Caiuá nominalmente, mas, em seu relatório, revelou que há falta de prestação de contas pelos líderes comunitários.
“São alegações graves e que deveriam ser seriamente investigadas”, diz Alice Wairimu Nderitu.
No mesmo documento, ela ainda pede a “demarcação urgente” de terras e menciona o conflito agrário no Estado.
A indígena Francisca Gonçalves Vogarim, filha de Elza, que ficou cega por causa da exposição excessiva aos agrotóxicos, conta o drama de conviver com a prática dos arrendatários da propriedade da Missão Caiuá.
“O veneno é o que mais prejudica nós. Antigamente, tinha horário para passar o veneno, mas há um tempo a quantidade aumentou muito. No ano passado, morreram dois cavalos”, relata.
“Eles passam veneno de dia e à noite. Minha mãe tem 72 anos e, como é idosa, tem imunidade baixa. Nos últimos anos, foi perdendo a visão e sofrendo com a quantidade de veneno. Ela fica mal mesmo: os braços coçam, os olhos coçam, e ela tem um mal-estar permanente no corpo”, completa Francisca.