Logomarca

Um jornal a serviço do MS. Desde 2007 | Domingo, 24 de Novembro de 2024

Sidrolandia

Desafio do desodorante, da camisinha, da cola: as ondas online que põem vida de crianças em risco

Família acredita que Adrielly, de 7 anos, colocou desodorante na boca estimulada por vídeo; postagens semelhantes existem aos milhares e trazem riscos sérios à saúde. Veja como prevenir e como agir em emergências.

G1

08 de Fevereiro de 2018 - 14:12

A morte de uma menina de sete anos por ingestão de aerossol volta a lançar luz sobre "desafios" que circulam em vídeos pela internet e têm nas crianças suas principais vítimas.

Adrielly Gonçalves, de São Bernardo do Campo (Grande São Paulo), deu entrada em uma Unidade de Pronto Atendimento no último sábado com parada cardiorrespiratória, em estado grave. As tentativas de reanimá-la não tiveram sucesso, segundo nota da Secretaria de Saúde da cidade. Um laudo do Instituto Médico Legal vai detalhar as causas da morte.

"Ela, criança inocente, colocou o desodorante direto na boca e desmaiou, tendo uma parada cardíaca na sequência. (Foi) por um motivo que jamais imaginamos, um vídeo sobre desafio de inalar desodorante aerossol", disse uma familiar em postagem no Facebook, fazendo "um alerta aos pais, (para) que fiquem de olho nos conteúdos que os filhos pesquisam na internet".

Youtubers fazem diferentes desafios que consistem em inalar a substância em vídeos que circulam pelas redes sociais e acumulam milhares de visualizações no site.

Há ainda o "jogo da asfixia" ou "do desmaio", em que compete-se para ver quem prende a respiração por mais tempo, além de desafios de inserir camisinhas nas narinas para tirar pela boca, de comer canela em pó em grandes quantidades e pura, de passar cola nas narinas e na boca. Fora as competições que induzem jovens e crianças a tomar grandes quantidades de bebidas alcóolicas.

Todas as práticas trazem gravíssimos riscos à saúde. E estão proliferando na internet.

A ONG cearense DimiCuida, voltada à conscientização sobre o perigo de jogos de asfixia, contabilizou na semana passada 24 mil vídeos em português de "desafios de desmaio" apenas no YouTube. Há outros 800 mil em inglês.

"E o número de vídeos fica extraordinariamente maior se contarmos outros vídeos de jogos semelhantes que também causam asfixia, como os da camisinha ou da canela", diz Fabiana Vasconcelos, psicóloga da ONG, à BBC Brasil.

Além disso, há relatos de convites a jogos do tipo em postagens no Instagram, no Snapchat e em fóruns de games online, ainda que o YouTube seja a maior fonte de acesso.

Há cerca de um ano e meio, um jovem de 14 anos de São Vicente (litoral de São Paulo) foi encontrado morto com um lençol no pescoço. Investiga-se se ele foi induzido a isso pelo chamado "jogo do desmaio".

"Muitos acidentes acontecem por causa (de brincadeiras assim), em que as crianças participam de desafios porque o amigo pediu, por exemplo", diz à BBC Brasil o capitão Marcos Palumbo, porta-voz do Corpo de Bombeiros de São Paulo.

"Geralmente o resultado é muito ruim, com lesões que duram o resto da vida ou causam a morte."

Até jogos aparentemente inocentes, como o que estimula a ingerir canela, podem ter consequências graves: "a canela em pó bloqueia e queima as vias respiratórias e pode causar asfixia. O jogo da camisinha também pode asfixiar", explica Vasconcelos, da DimiCuida.

E o desafio do desodorante, que aparentemente causou a morte de Adrielly Gonçalves, é perigoso por causa do alto teor de etanol (álcool) presente em qualquer tipo de desodorante, explica Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica (Ceatox) do Instituto da Criança da Faculdade de Medicina da USP.

"Esse teor é de 70% a 90%, muito maior do que o do uísque ou o absinto, por exemplo. E, ao inalar, o volume (de álcool) absorvido é extremamente alto, provocando uma inflamação da laringe e uma parada cardíaca", diz à BBC Brasil.

Como agir no caso de emergências

Em situações como essas, é preciso correr para o pronto-socorro, porque a criança precisará de inalação ou entubação urgente, explica Wong.

E, tendo havido a ingestão de produtos tóxicos ou alcoólicos, a orientação dos especialistas é nunca provocar o vômito (que pode piorar a obstrução das vias aéreas) nem oferecer nada às crianças sem antes buscar ajuda especializada.

Essa ajuda pode ser dada pelos bombeiros (telefone 193) ou por centros de assistência toxicológica, como o Ceatox da Faculdade de Medicina da USP (0800-148110), que atende ligações do Brasil inteiro nas 24 horas do dia.

"As substâncias podem causar reações diferentes entre si, e cada uma vai exigir um tipo de tratamento, então é primordial pedir auxílio especializado", diz Palumbo, do Corpo de Bombeiros.

No caso de asfixia ou parada respiratória, Palumbo orienta a colocar a criança deitada de costas no chão (por ser uma superfície rígida) com o corpo alinhado ao pescoço, para ajudar a liberar as vias aéreas.

Isso não dispensa, porém, que se chamem os bombeiros imediatamente, para obter orientações específicas para as circunstâncias de cada caso.

Veja, pelo movimento do tórax, se há sinais de respiração e batimentos cardíacos. Se não houver, é possível que o atendente emergencial oriente a fazer uma massagem cardíaca (um vídeo dos bombeiros no Facebook ensina a fazer as manobras)

No caso de queimaduras, os bombeiros ensinam a lavar a área do corpo com água corrente, cobrir com gazes úmidas e com um pano, para proteger o local. Jamais passe qualquer produto.

Como prevenir

"Como nativas do mundo digital, as crianças têm acesso muito mais rápido a esses vídeos, enquanto os pais ainda não sabem como administrar (a navegação infantil)", diz Vasconcelos, da DimiCuida.

A prevenção, diz ela, começa com respeitar a idade mínima de acesso às plataformas sociais (16 anos para WhatsApp e 13 anos para Facebook, por exemplo). E Vasconcelos sugere a pais e responsáveis acompanhar a vida online das crianças assim como ocorre com a vida offline.

"Assim como perguntamos 'com qual amigo você vai sair hoje?', devemos perguntar 'quem são seus amigos online?', 'a qual vídeo você assistiu hoje?', e assistir junto", explica.

Vasconcelos opina que não adianta proibir a visualização de vídeos perigosos.

"É preciso criar um ambiente (para discutir os vídeos) sem julgamento, mas sim com uma reflexão crítica, que ainda não está maturada nas crianças e adolescentes. 'Esse rapaz do vídeo tem quantos anos? Ele não parece ser uma criança como você. Por que ele está fazendo isso? E vale a pena correr esse tipo de risco? Vale a pena compartilhar esse conteúdo?'", diz.

Como, para crianças e adolescentes, a morte é algo muito abstrato, Vasconcelos sugere deixar claro o risco desses vídeos de forma mais concreta - dizendo, por exemplo, que a criança pode perder seus movimentos e ser impedida de jogar futebol.

Além disso, é importante denunciar vídeos com conteúdo perigoso.

Em nota, o YouTube afirma que "as políticas (da plataforma) restringem conteúdos que têm a intenção de incitar violência ou encorajar atividades ilegais ou perigosas, que apresentem um risco inerente de danos físicos graves ou de morte. Qualquer usuário pode denunciar esse tipo de conteúdo e nossa equipe analisa essas denúncias 24 horas por dia, sete dias por semana".