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Esporte

Para matar a saudade da Libertadores: a galinha que redefiniu a identidade do River

Na decisão de 1966, o time de Núñez levou uma retumbante virada do Peñarol.

GloboEsporte

24 de Abril de 2020 - 16:18

Naquele 20 de maio de 1966, ninguém poderia imaginar que a dolorida derrota na final da Libertadores seria um evento histórico secundário para o River Plate. Porque, no escandaloso tombo diante do Peñarol, no Estádio Nacional de Santiago, era plantada a semente do incontornável apelido de Gallina, sacramentado dias depois, na cancha do Banfield, com a participação decisiva daquela que poderíamos chamar de A Galinha Fundadora.

Mas comecemos com o primeiro milho, que é sempre dos pintos. O que sucede é que o River Plate chegava com ganas para a disputa do torneio continental. Inclusive, relegara a segundo plano o campeonato argentino, o que não era habitual. Para vencer sua primeira Libertadores, contava com um timaço que começava com o lendário Amadeo Carrizo embaixo das traves e ainda contava com Jorge Solari e Ermindo Onega, entre outros maestros da cátedra futebolística.

Até então, em seis edições, apenas o Independiente havia vencido pela Argentina (em 1964 e 1965), e a situação parecia encaminhada de forma irreversível para um terceiro título quando, no jogo de desempate, após uma vitória para cada time nas partidas anteriores, o River Plate abriu 2 a 0 ainda na primeira etapa. Tudo se desenhava para a festa millonaria, exceto por um motivo: quem estava do outro lado do campo. Não apenas o resultado mudaria. Também a identidade seria redefinida. E o Millonario ganharia outra alcunha, menos pomposa.

Aquele Peñarol, já era bicampeão da Libertadores, era o demônio vestido de amarelo e preto. Comandado por Alberto Spencer, artilheiro histórico da competição, alcançou o empate como um relâmpago, em seis minutos, e na prorrogação alargou o placar para 4 a 2. O River Plate saía de um 2 a 0 e iminente conquista do título para uma derrota vexatória que jamais seria esquecida pelos rivais, que transformaria sua própria identidade. Para deixar tudo um pouco mais amargo, onde o fernet encontra o chá de losna, aquele tombo aconteceu em meio a um período de dezoito anos sem títulos.

Nesse ponto da história, como numa película estrelada por Ricardo Darín, há um corte para um clube noturno em Banfield, ao sul da Província de Buenos Aires, onde um grupo de amigos conversa e bebe sem compromisso, até que surge a sempre indispensável ideia de promover uma cargada, ou uma inadiável "flauta", com o destroçado River Plate, que visitaria a cancha do Banfield nos próximos dias para um jogo pelo campeonato nacional. Tamanha falta de bravura não poderia passar incólume.

Um torcedor do Taladro de súbito tem a iluminação de sugerir que se levasse para a cancha uma galinha -- de carne, osso, coxa e sobrecoxa. O comissário responsável pela segurança do estádio também costumava beber junto, e também era torcedor do Banfield, então as questões logísticas estavam resolvidas. E assim, instantes antes da pelota ser colocada para rolar, um grupo de amigos entrou na arquibancada com uma galinha escondida dentro de uma sacola. A ave estava vestida de gala, atenta à magnitude da ocasião: haviam lhe colocado uma cinta vermelha, para que não houvesse dúvidas de que levava a camisa do River estufada no peito. Era, o pobre bicho fardado, a representação perfeita da amarelada.

E assim, quando o vice-campeão do continente entrava na cancha, da platéia surgia aquele voo meio estabanado, pois na verdade era um arremesso, d'A Galinha Fundadora. Vítima das circunstâncias, foi recebida com um coice de um jogador millonario, para depois ser perseguida por dezenas de fotógrafos, transformados em raposas ansiosas pela imagem que deixava o jogo em segundo plano. E, no dia seguinte, lá estava o nobre exemplar galináceo estampando a capa do diário Crónica.

A partir daquele arrebatamento aviário, não havia mais alternativa: o River passaria a ser conhecido como gallina e nos próximos muitos jogos veria aves de todos os portes e plumagens serem arremessadas sempre que entrasse em uma cancha visitante. O ideólogo e executor da zombaria passou a ser reconhecido no bairro, e não se cansava de se gabar sobre aquela tarde gloriosa pelas bodegas e padarias, mas se calava sempre que um jornalista se aproximava. Temia que os torcedores do River passassem a lhe perseguir, mesmo quando o apelido já havia adotado pelos próprios millonarios.

Irredutível, o herói sem capa que hoje tem mais de 80 anos e ainda vive em Banfield negou até participar de churrascos com a torcida do Boca Juniors, eternamente grata, e mesmo um convite remunerado para sentar no sofá de Susana Giménez, famosa apresentadora da TV argentina. Desde então, deu apenas uma entrevista, sem revelar o nome, e se diz que o jornalista era seu neto. Muito mais fugaz mostrou-se a fama da galinha, que sequer pôde aproveitar o estrelato midiático. O responsável por cuidar do campo do Banfield, conhecido como Portugués, teria lhe transformado em cozido naquela mesma noite, antes que ganhasse a capa dos jornais.

Como acontece com várias torcidas, os adeptos do River Plate transformaram o apelido pejorativo em parte da identidade do clube. Hoje, eles mesmos se apresentam como gallinas e se referem ao Monumental de Núñez como Gallinero. O que chama a atenção é que o apelido não nasceu de algum preconceito, nem faz referência à condição social, como acontece com frequência, mas sim a um calamitoso revés em campo. Afinal, algumas derrotas ficam bonitas com o tempo, sabemos todos nós e também soube aquela galinha, condenada a ser mártir, que ciscou certo por linhas tortas para reescrever um capítulo fundamental do futebol sul-americano.