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Geral

Mudança na Lei Maria da Penha gera impasse entre delegados e juízes

PLC estende a delegados prerrogativa de conceder medidas protetivas

Midiamax

09 de Julho de 2016 - 10:30

Na semana passada o Brasil amanheceu com a notícia de que Luiza Brunet, atriz e ex-modelo conhecida pela beleza e discrição, foi vítima de espancamento pelo então namorado, o bilionário Lírio Parisotto, durante uma viagem aos Estados Unidos. Além dos hematomas, a atriz teve quatro costelas quebradas. Ela afirma ter se trancado num quarto e conseguido fugir no dia seguinte para o Brasil. Aqui, ela registrou a ocorrência e conseguiu, também, uma medida protetiva que impede Parisotto de se aproximar dela.

O benefício da medida protetiva que Brunet obteve é garantido por lei no Brasil, no caso, pela Lei Maria da Penha, como ficou conhecida a Lei 11.340/06. Após sancionada, a legislação garantiu mecanismos de proteção às vítimas de violência doméstica e qualificação da pena dos agressores. A Lei também orienta quanto a criação de órgãos em defesa da mulher, tais como delegacias e juizados especializados no atendimento às vítimas de agressão no lar.

Em agosto deste ano, a lei completará 10 anos desde sua sanção. E poderá, em breve, receber mudanças, para o bem ou para o mal. O fato é que as medidas protetivas, atualmente, só podem ser designadas por juízes (veja infográfico). Porém, de acordo com um projeto de lei que tramita na CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado Federal, as medidas poderão ser decretadas também por delegados, em função da demora na concessão de medidas que protegem vítimas de violência doméstica.

A possível mudança, entretanto, é alvo de uma grande polêmica, isso porque, na visão dos magistrados, a matéria é inconstitucional e medidas protetivas garantidas por delegados não terão força judicial.

"A medida protetiva restringe o direito fundamental de uma outra pessoa. É uma matéria jurisdicional, e não de cunho administrativo, na qual só um juiz pode decidir sobre isso, pelo que diz a Constituição. A magistratura se coloca contra porque entende que há a inconstitucionalidade, ou seja, a medida protetiva expedida pelo delegado pode ser contestada pelo agressor. Na prática, o papel entregue à vítima não tem poder algum", explica a juíza Jacqueline Machado, titular da primeira Vara de Medidas Protetivas do país, que funciona na Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande.

Para a magistrada, as delegacias também não têm estrutura para intimar o agressor com relação à proteção concedida às vítimas, já que são poucas as delegacias especializadas em atendimento à mulher e, dentre as que existem, poucas têm plantão 24h ou funcionam nos fins de semana.

"Essa mulher sai da delegacia com um papel dizendo que ela tem uma medida protetiva, mas na verdade isso seria uma ilusão para ela, porque o agressor não está intimado. Em Mato Grosso do Sul, na Casa da Mulher Brasileira, nós temos a primeira vara do país especializada em medidas de proteção, que saem em tempo muito ínfimo. A lei prevê 48h, mas em menos de 5h horas já está deferida a decisão. Além disso, existem 15 oficiais de justiça para o cumprimento delas. O que queremos é que as delegacias e as Casas da Mulher Brasileira disponham da mesma estrutura, até porque o papel do delegado é investigar", acrescenta.

A juíza destaca que atribuir mais uma responsabilidade aos delegados, além de sem efeito (devido à constitucionalidade da matéria), enfraquece a Lei Maria da Penha. "O agressor vai poder questionar a medida protetiva do delegado, já que esse cargo não tem poder jurisdicional, ele é órgão investigador, para fazer investigação. Na verdade, o que precisamos é da agilização dos inquéritos para que os agressores sejam realmente punidos, para que numa segunda agressão ele já tenha uma reincidência. Isso a gente não tem hoje e essa falta de estrutura é notória".

Campo Grande, onde já existem três Varas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, foi a primeira capital a receber uma unidade da Casa da Mulher Brasileira, numa espécie de projeto-piloto que servirá de referência a todo o país. Desde a inauguração, em 3 de fevereiro de 2015, foram concedidas 3.602 medidas protetivas, considerando até junho deste ano - somente no último mês foram 234 decisões expedidas pela vara especializada, criada em março de 2015. "E diariamente ordeno a prisão de agressores que desrespeitam as medidas protetivas. Imagina só quando eles tomarem ciência de que uma decisão expedida por delegado não tem força, porque é inconstitucional. É algo muito perigoso", afirma Jacqueline.

A titular da Semmu (Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher) de Campo Grande, Leide Pedroso, coaduna com a postura da magistrada, também sob amparo da hipótese da inconstitucionalidade e também expande o debate para a questão estrutural. "Já temos, em Campo Grande, a experiência positiva de uma vara especializada em expedir medidas protetivas para essas mulheres. Quer dizer, já há toda uma estrutura organizada para atender e agilizar as medidas a quem está ameaçada de morte e precisa da segurança. Por quê não pode haver um investimento nesse modelo?", questiona.

Contraponto

​O Presidente da Adepol (Associação dos Delegados de Polícia do Estado de Mato Grosso do Sul), Jefferson Nereu Luppe, contrapõe o argumento da magistrada. Segundo ele, a mudança na lei vai contribuir para a garantia da proteção das vítimas de violência doméstica. "Se essa medida protetiva foi concebida no momento em que a mulher está em condição de vulnerabilidade, ou seja, quando ela chega na delegacia, conseguiremos evitar novas agressões, já que atualmente só o magistrado pode conceber e isso, num prazo de até 48h. E esse prazo pode levar a mulher à morte", afirma.

Para o delegado, a inconstitucionalidade da matéria cai por terra porque o que prevalece diante de uma situação de agressão é a vida da vítima, e não a liberdade do autor. "Não tem sentido a vítima comparecer à delegacia e meia hora depois voltar para a casa e encontrar o agressor por lá. Não queremos invadir a seara do juiz, o que a gente tem que levar em consideração é que a medida é tal qual o auto de prisão em flagrante do delegado, que depois de comunicado à autoridade judiciária, ela pode tomar uma providência, sendo relaxar ou não a medida protetiva, caso haja discordância", explica.

O presidente da Adepol também afirmando que a atual estrutura das delegacias de polícia de plantão é adequada, porque dispõem de efetivo, como viaturas caracterizadas e descaracterizadas, para fazer a comunicação da medida ao agressor. "A nossa delegacia dispõe, sim, da possibilidade de intimar o agressor, e nesta intimação ele vai tomar conhecimento das medidas protetivas. A autoridade policial tem, sim, essa capacidade", diz.

A delegada titular da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), Ariene Cury, concorda com o presidente da Adepol. "Uma vez que a decisão do delegado de aplicar algumas medidas passará por analise judicial em 24 horas, o juiz ainda pode confirmar ou revogar a decisão e, se for o caso, aplicar uma medida diversa. E de toda forma, a policia ainda vai poder intimar o agressor, causando efeito mais pedagógico do que o oficial de justiça", pondera.

O relator da matéria no Senado, Aloysio Nunes (PSDB-SP), também coloca em panos quentes a polêmica em torno da inconstitucionalidade da proposta de lei, de autoria do deputado federal Sergio Vidigal (PDT-ES). "Ao contrário do que se tem sustentado, a proposta não suprime nem modifica competência do Poder Judiciário, apenas estende, também, ao delegado de polícia, algumas prerrogativas para ele mesmo poder avaliar, ali, no balcão da delegacia, de forma imediata e sem burocracia, a necessidade de acatar o pedido da mulher pela proteção emergencial contra o agressor", afirma.

Sem diálogo

Para além da questão relacionada à constitucionalidade da PLC, outro aspecto da matéria em tramitação funciona como uma névoa sobre o que a Lei Maria da Penha, de fato, representa. Resultado de um esforço coletivo exaustivamente debatido por ONGs de proteção da mulher, a matéria é um claro resultado do diálogo entre os movimentos sociais e o poder legislativo. A apresentação de uma PLC sem consulta ao movimento, portanto, é mal vista, muito embora haja trechos interessantes na proposta.

"O grande problema do PLC-07/2016 é o artigo 12-B. Nós, da Marcha Mundial das Mulheres, já estamos há anos denunciando a omissão das autoridades policiais no trato diário com as mulheres vítimas de violência. Frequentemente, essas autoridades reproduzem a violência amplificando a gravidade dos casos, o que leva as mulheres a se sentirem desprotegidas nestes espaços. Portanto, não aceitamos esta proposta de alteração na Lei Maria da Penha, bem como nenhuma outra sem que sejam amplamente debatidas com os movimentos feministas, entidades e órgãos públicos de defesa dos direitos das mulheres", aponta Maisa Oliveira, integrante do movimento.

 

Em Campo Grande, a Rede Feminista de Saúde também se manifestou contra a PLC. "Nós somos contra a intervenção na lei. O que precisamos é que ela seja efetivamente cumprida. Eu, que trabalho no SUS, já sei que os serviços de emergência estão funcionando. Porém, a continuidade do atendimento psicossocial ainda é muito débil, tanto no atendimento às mulheres, como a seus filhos", relata a assistente social e mestre em Saúde Coletiva Estela Scandola.

Símbolo da lei, Maria da Penha também critica a PLC (Fabio Pozzebom/AgB)Símbolo da lei, Maria da Penha também critica a PLC (Fabio Pozzebom/AgB)

 

A própria Maria da Penha, vítima de tentativa de feminicídio que tornou-se o maior símbolo da resistência da mulher em situação de vulnerabilidade e que também dá nome à legislação, criticou a falta de diálogo com movimentos sociais para a apresentação da PLC.

"O PLC poderá sofrer ações de inconstitucionalidade, o que não é bom para a lei que leva meu nome e nem para as mulheres brasileiras. Além disso, o Consórcio Nacional de ONGs, o movimento de mulheres e as demais instituições do sistema de Justiça já se posicionaram contrários ao projeto. Precisamos encontrar uma redação que seja consensual, que permita a concessão de medidas protetivas com mais segurança. Todos e todas preocupam-se com as mulheres que sofrem violência doméstica, mas não podemos colocar a lei em risco votando apressadamente, sem discussão com as mulheres e os demais integrantes do sistema de Justiça", declarou Maria da Penha, em apelo público para que o Senado Federal discuta melhor a matéria antes da votação.

A postura de Maria da Penha claramente reforça a insatisfação e indignação dos movimentos sociais com a legislação que parece ser imposta às mulheres a ferro e fogo, sem diálogo ou consulta pública e sem uma análise eficaz de impacto. É como arremata a juíza Jacqueline Machado. "Não deixa de ser, também, uma violência ao que a lei Maria da Penha simboliza, que é o protagonismo da mulher brasileira na construção da lei mais simbólica que dispomos sobre o combate à violência de gênero. E nós não queremos ver esse marco enfraquecido", conclui.