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Laqueadura é direito previsto em lei para as brasileiras, mas na prática tem sido uma verdadeira via crucis sem garantias
A esterilização cirúrgica é direito previsto em lei para as brasileiras, mas na prática apenas ¼ das mulheres que tentam o procedimento conseguem realizá-lo.
Maire Claire
21 de Março de 2019 - 10:24
m pesadelo.” É com essas palavras que a paranaense Emilaine dos Santos, 26 anos, descreve o sentimento em relação à maternidade. “Não me imagino gerando uma criança. Sinto como se não tivesse nascido para isso. Prezo uma autonomia que é incompatível com o fato de ter filhos”, diz a nutricionista, que se dedica agora a concluir um mestrado.
A certeza de que não quer engravidar a fez pesquisar desde muito cedo seus direitos. Descobriu que, para ter a laqueadura custeada pelo SUS, precisava ter ao menos 25 anos. Dias depois do aniversário, partiu em busca do serviço em um hospital público. “A enfermeira que me atendeu não quis dar seguimento ao pedido. Disse que não tinha cabimento eu querer aquilo. Após ouvir o juízo de valor dela, abri uma reclamação na ouvidoria do município onde morava na época, Guarapuava, interior do Paraná. Me encaminharam para uma nova clínica, que concentrava atendimentos na saúde feminina”, conta. Chegando lá, Emilaine foi atendida por um ginecologista que a mandou para casa “pensar por uns dias”.
Uma semana depois, quando voltou, foi atendida por uma “ginecologista mulher” que lhe disse que “nem por todo dinheiro do mundo faria a cirurgia, e tinha certeza que nenhum colega dela faria também”. Ríspida, deixou a paciente com perguntas no ar e a dispensou do consultório. “Me senti impotente. A autonomia sobre o meu corpo estava sendo violada e eu não podia fazer nada. Estava ali, com a lei impressa em mãos, na frente dela, que só se recusava e nada mais”, diz Emilaine, que há 12 anos faz uso de camisinha e anticoncepcional oral para evitar uma possível gestação. A combinação de dois métodos contraceptivos, no entanto, não lhe trouxe paz. “Criei uma trava para relações sexuais. Entro em pânico só de pensar que corro o risco de engravidar. Ser impedida de realizar a laqueadura já é algo que afeta minha saúde mental e minha vida social. Passei a ter receio de flertar, de ir a encontros. Além disso, a lei brasileira não me acolhe caso tenha uma gravidez indesejada.”
Diante de tantas recusas, seu próximo passo será recorrer a um serviço particular, indicado por uma amiga que conseguiu ligar as trompas e compartilha do mesmo desejo: nunca ter filhos.
Maternidade rejeitada
A discussão sobre o direito à laqueadura no país vem ao encontro de um número crescente de brasileiras dizendo não à maternidade. Segundo o IBGE, em 2004 elas representavam 10% da população feminina; em 2014, já eram 14%. A Lei 9.263, de 1996, mais conhecida como Lei do Planejamento Familiar, garante esse direito a elas. O texto prevê que a pessoa deve ter capacidade civil plena, ser maior de 25 anos de idade ou ter, pelo menos, dois filhos vivos. Se for casada, depende do “consentimento expresso de seu cônjuge” para realizar o procedimento.
O problema é que uma mulher que tenta a laqueadura no Brasil tem cerca de 25,8% de chances de realmente conseguir fazê-la. O dado é de uma pesquisa realizada por duas alunas da Universidade Federal de Santa Catarina em 2006. Um detalhe: 8% das mulheres acompanhadas engravidaram no período de espera pela esterilização. O estudo é citado em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI 5.911/2018, que espera votação no Supremo Tribunal Federal. De acordo com a ação, as exigências da Lei do Planejamento Familiar – a idade mínima de 25 anos, ter ao menos dois filhos vivos e autorização do cônjuge – violam direitos fundamentais previstos na Constituição, como os sexuais e reprodutivos, a dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade de escolha e de planejamento familiar. Além do mais, contrariam tratados internacionais firmados pelo Brasil. A ação ainda cita que, de acordo com a Lei Maria da Penha, impedir uso de método contraceptivo é considerado violência doméstica.
No STF, ainda há outra Ação Direta de Inconstitucionalidade, a 5.097, de 2014. Protocolada pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), que contesta o consentimento do cônjuge para esterilização voluntária. Rita Lima, coordenadora da Comissão dos Direitos da Mulher da Anadep, comenta o pedido: “Delegar uma decisão sobre a autonomia do corpo da mulher para um terceiro – no caso, o cônjuge – infringe a liberdade dessa mulher de determinar sobre a própria vida e o corpo”.
A técnica em enfermagem Maria Cecília Ferreira sabia dos impeditivos da lei quando, aos 25 e mãe de uma menina de 2, procurou pela laqueadura em uma unidade de saúde próxima de sua casa, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro.
É de praxe que, depois que a mulher se apresente a uma unidade de saúde manifestando sua vontade, seja encaminhada para sessões de planejamento familiar, assista a palestras sobre o tema, preencha documentos, tenha entrevistas com enfermeiros, ginecologistas e psicólogos e aguarde 60 dias antes de ser liberada para a cirurgia, período esse que deve ser usado para reflexão. Maria Cecília mal chegou a participar das sessões de planejamento familiar. A negativa para ela já aconteceu na primeira conversa com a atendente da unidade de saúde. “Me disse que eu não atendia o perfil, que seria mais prudente ter outro filho, que poderia acontecer algo a minha filha e eu me arrependeria do procedimento para sempre”, lembra. “Foi uma enxurrada de objeções. Saí daquele lugar com uma culpa enorme. Ela me fez acreditar que eu estava errada por querer ligar as trompas, que não tinha condições de decidir sobre meu destino”, continua.
Com a negativa do SUS, Maria Cecília começou uma verdadeira peregrinação por clínicas particulares. Nelas, as respostas não foram diferentes nos seis endereços que visitou. Hoje, aos 32, enfim se prepara para passar pela laqueadura. Uma ginecologista aceitou realizá-la por R$ 4.900 e “desde que pudesse não colocar a real razão da cirurgia no prontuário”. Os motivos da médica, a paciente não se interessou em saber. “Só quero fazer de uma vez por todas. Não aguento mais viver com medo da iminência de uma gravidez indesejada. Isso acabaria com meus planos atuais”, diz a técnica em enfermagem, que agora tenta terminar os estudos interrompidos pela gravidez de nove anos atrás. “É difícil lidar com a frustração de não concluir seus sonhos. Vivi isso e foi amargo. Amo minha filha, faço tudo por ela, mas engravidar naquela época me afastou de desejos que importavam”, desabafa.
Meu corpo, minhas regras
Um grupo de militantes briga, no entanto, para que mulheres consigam ter autonomia sobre seus destinos. Em especial, defensores públicos. Foram eles que ajudaram a carioca M*. quando, aos 24 anos – um a menos do que o previsto em lei – e grávida de 35 semanas do terceiro filho, conseguiu deixar a maternidade com as trompas ligadas. Outra vitória foi o fato de ela ter sido submetida à esterilização durante uma cesariana. Nota: a Lei 9.263 não permite que os dois procedimentos sejam feitos simultaneamente. “Entendemos, porém, que a laqueadura no momento do parto é a melhor opção para as mulheres. É mais seguro por se dar numa única intervenção e descomplica, pois nem sempre elas terão oportunidade de passar por outra cirurgia. É um desperdício de energia e verba pública separar em dois atos cirúrgicos parto e esterilização”, analisa Alessandra Bentes, do Núcleo de Primeiro Atendimento de Duque de Caxias, um braço da Defensoria Pública do Estado fluminense.
Além de cuidar da situação de M., o órgão defendeu outras 60 mulheres que, como ela, não estavam cobertas pela lei, mas precisavam urgentemente da esterilização. “Todas com a mesma expectativa e histórias de gestações precoces e numerosas”, diz Alessandra, que acredita que, se tivessem recursos financeiros, M. e tantas outras poderiam tentar a sorte em hospitais particulares. “Não é justo que, por serem carentes financeiramente, tenham mais dificuldades”, argumenta. Fato é que para a maior parte dessas mulheres a informação nem sequer chega. “E tem mais: agentes de saúde, médicos, diretores de hospitais e até as próprias secretarias municipais de saúde não conhecem os direitos dessas mulheres, tampouco fazem a laqueadura, muito embora existam quadros que preenchem os requisitos”, afirma Alessandra.
Os motivos da dificuldade
Para a economista e pesquisadora Luiza Rodrigues, autodeclarada ativista pela laqueadura, o problema está no que chama de responsabilização dos médicos. “Eles simplesmente não querem fazer a cirurgia por dinheiro nenhum pois temem serem processados por uma paciente arrependida. Outro motivo de ação contra médicos e hospitais são as cirurgias malsucedidas, casos nos quais a mulher engravida depois da esterilização.” Quando o tema é laqueadura, processos públicos contra médicos e hospitais podem ser encontrados em uma busca simples na internet. No site JusBrasil, que conecta advogados a possíveis clientes, são 88 resultados somente de jurisprudência para a busca “laqueadura & gravidez posterior” no último ano.
Surpreendentemente, o Brasil está na décima posição no ranking de esterilização feminina, segundo a Organização Mundial de Saúde. Só em 2017, foram feitos 66.893 procedimentos. Outro motivo que faz com que a lei dificulte o procedimento é o fato de que a Lei do Planejamento Familiar nasceu de uma necessidade de tentar conter uma onda de laqueaduras que se deu entre os anos 70 e 90. Houve até uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre o assunto, fruto de denúncias de que o escasso acesso aos métodos contraceptivos, principalmente nas áreas mais carentes do país, era campo fértil para que ligaduras de trompas fossem oferecidas como escambo eleitoral. A Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, feita pelo Ministério da Saúde em 96, mostrava que 45% das brasileiras em uniões estáveis estavam laqueadas e 1/5 delas com menos de 25 anos.
A Comissão, presidida pela então senadora Benedita da Silva, resultou no projeto de lei, aprovado pelo Congresso em 1996. Está lá: “É condição para que se realize a esterilização o registro de expressa manifestação da vontade em documento escrito e firmado após a informação dos riscos da cirurgia”. Embora algum avanço tenha sido verificado após a criação da lei, o Estado brasileiro permanece incapaz de oferecer às suas cidadãs garantias de que seus direitos sexuais e reprodutivos sejam preservados e respeitados.