Mato Grosso do Sul
"Temos uma falsa percepção de que submeter pessoas a trabalho escravo é algo normal"
Em 2023, o Estado bateu recorde em denúncias trabalhistas; de acordo com o MPT, 93 dessas foram por trabalho escravo.
Correio do Estado
03 de Fevereiro de 2024 - 10:36
De acordo com levantamento do Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS), em 2023, houve recorde de denúncias trabalhistas ao órgão. Ao todo, foram 372 registros, que abrangem acidentes de trabalho, trabalho infantil, trabalho escravo e fraude trabalhista.
O número foi puxado principalmente por denúncias de acidentes de trabalho, 139 durante o ano todo. O restante é formado por 87 reclamações de trabalho infantil, 93 de trabalho escravo e 53 de fraude trabalhista.
Em entrevista exclusiva ao Correio do Estado, o procurador do Trabalho Paulo Douglas Almeida de Moraes, coordenador regional de Erradicação do Trabalho Escravo, fala sobre os índices de trabalho escravo em MS.
PERFIL
Procurador do Trabalho da 24ª Região, ex-juiz do Trabalho da 15ª Região, ex-auditor fiscal do Trabalho, mestre em Direito pela UCB, bacharel em Administração de Empresas pela UCDB, especialista em Administração de Sistemas e de Informações Gerenciais pela FEA-USP, ex-presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Aplicados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra).
Segundo dados do MPT-MS, o número de denúncias trabalhistas, apesar de oscilar, mantém-se alto, tendo, inclusive, aumentado no último ano. A quais fatores você atribui esse aumento?
Na verdade, a questão é multifatorial. O trabalho escravo, inicialmente, é importante compreendermos que ele acontece longe dos olhos das instituições que fiscalizam esse tipo de crime, então, quanto mais nós conseguimos nos articular e receber denúncias, apurar denúncias, mais nós conseguimos, na verdade, chegar ao que já existia e estava oculto. A principal situação, o fator a que eu atribuo esse aumento é um aperfeiçoamento da nossa capacidade de identificação e de apuração do trabalho escravo, em especial aqui em Mato Grosso do Sul.
E por que o trabalho análogo à escravidão ainda é tão flagrado no País?
Bom, o Brasil é muito grande, então, nós temos razões diversas conforme a região do País. Em Mato Grosso do Sul, eu diria que as principais razões são de natureza cultural e também, é claro, econômica. Isso se explica por alguns motivos. Nós estamos passando por um momento de prosperidade econômica na área rural, no entanto, não temos uma redução, ao contrário, temos um aumento no número de trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão.
Essa situação demonstra que o que temos é uma falsa percepção de que submeter pessoas a trabalho escravo é algo normal, algo naturalizado, e isso decorre de uma variável de um elemento cultural, e não de um desejo ou de um objetivo de lucrar com a exploração do trabalho escravo.
A gente percebe isso claramente nos resgates que nós fazemos na área rural, em atividades como cercamento, limpeza de pasto e também no transporte do gado na região do Pantanal. Você faz isso nas comitivas, e sempre fez isso de uma maneira irregular, submetendo os trabalhadores a condições degradantes. Mas isso era tido como normal e continua sendo, digamos assim, naturalizado pelos empregadores.
Mas aí tem um elemento importante, essa situação também é naturalizada pelos trabalhadores, porque o perfil de trabalhadores que nós normalmente resgatamos são indígenas, indigentes ou estrangeiros em situação de indigência no Paraguai ou na Bolívia. Essas pessoas já nasceram, no seu cotidiano, excluídas, de certo modo, de condições dignas de trabalho no seu ambiente normal. Então, quando elas são colocadas lá nas fazendas em situação degradante, para elas também é algo normal. Perceba que o elemento cultural me parece determinante.
Então os principais locais em que há trabalhadores nessas condições são fazendas?
São fazendas. O trabalho escravo urbano, que já vem dando sinais, com alguns casos sobretudo na Região Sudeste, ainda é algo incomum aqui no Estado. A nossa maior incidência, a esmagadora maioria é na área rural e em atividades como essas que eu mencionei, como o cercamento e a limpeza de pasto. Na cana-de-açúcar, no plantio ainda a gente percebe incidência, nas carvoarias eventualmente, mas com menor incidência que no passado e sempre com esse perfil de mão de obra a que eu também me referi.
Basicamente, são os nossos indígenas, os estrangeiros também em situação degradante do Paraguai e da Bolívia e brasileiros que são resgatados da rua por quem tem interesse em prover essa mão de obra, lembrando sempre que 99,9% das vezes nós temos a figura do gato. Então, quem arregimenta, quem vai lá nos redutos de indigência, por assim dizer, são esses gatos, que ganham com a exploração e o fornecimento dessa mão de obra.
Esses gatos seriam as pessoas, digamos assim, que recrutam essa mão de obra?
Exato, é um aliciamento, digamos assim. Não poderíamos chamar isso de contrato formal ou mesmo verbal, até porque ele tem um fim ilícito. Essas pessoas, elas servem aos verdadeiros tomadores como intermediários, passando a falsa impressão para aqueles tomadores, os fazendeiros ou mesmo os capatazes de fazenda, de que essa contratação por intermédio de gatos geraria uma proteção jurídica e uma desresponsabilização para aquele que contrata, o que não é verdade. O fato de utilizar um terceiro intermediário eventualmente tende a agravar a situação.
Quais são os principais elementos que caracterizam o trabalho escravo na atualidade?
O trabalho escravo contemporâneo difere bastante do trabalho escravo historicamente conhecido. Não se trata, atualmente, de pessoas sendo açoitadas ou acorrentadas. O que temos hoje é uma violação bastante aguda da dignidade humana desses trabalhadores, e isso ocorre, principalmente, pela manutenção desses trabalhadores em condição degradante.
Mas há outras formas que temos encontrado, a servidão por dívida e a jornada abusiva, que também se caracterizam como trabalho escravo. O cerceamento do direito de ir e vir não tem sido muito comum, mas também se percebe, sobretudo em regiões como o Pantanal, onde a própria localização desse trabalhador impede que ele consiga se locomover livremente.
O senhor pode dar alguns exemplos de condições degradantes de trabalho?
A imagem que vem à mente sempre que falamos do trabalho escravo é daquela pessoa embaixo do barracão de lona, sem ter uma cama para dormir, sem ter água potável para beber, com alimentação absolutamente precária, sem uso de qualquer equipamento de proteção individual, exposto a ataque de animais peçonhentos e, eventualmente, ameaçados, e isso, sim, tem aumentado, a ameaça por parte do empregador, eventualmente com uso de arma de fogo.
Quais são as penalidades aplicadas aos empregadores e até mesmo a esses gatos que submetem trabalhadores a essas condições?
A prática desse crime leva a consequências em três eixos. O eixo penal, pois se trata de um crime, é o eixo que obviamente pode levar à prisão. Aliás, no dia 25 de janeiro, nós tivemos uma prisão em flagrante em uma operação da qual participamos na região de Corumbá.
Nós temos o eixo civil trabalhista, em que o Ministério Público do Trabalho tem sua proeminência, em que nós buscamos a indenização dos direitos desses trabalhadores, e não só as verbas rescisórias, mas principalmente o dano moral individual, que hoje varia entre 20 salários e 50 salários que esse trabalhador recebia, é um valor bastante substancial, e também o dano moral coletivo nesse eixo civil trabalhista.
O terceiro eixo é o administrativo trabalhista. O empregador que é flagrado explorando mão de obra escrava é incluído em uma lista suja. Ele recebe uma gama bastante importante de autos de infração, e a inclusão do nome desse proprietário e dessa propriedade na lista suja tem implicações bastante importantes. Ele tem a vedação de acesso a recursos públicos, se eventualmente já contraiu algum empréstimo de recursos públicos há o vencimento antecipado dessa dívida, e em alguns segmentos há a restrição de compra do material ou do produto dessas fazendas por parte dos tomadores.
É o exemplo que tem ocorrido aqui na cadeia da carne: aquele empregador que cria gado e vende ao frigorífico, eventualmente, tem sua comercialização impedida, uma vez sendo constatado trabalho escravo em sua propriedade
O que acontece com esses trabalhadores que são encontrados nessas situações? Eles são enviados para algum local ou entram em contato com a família?
Essa é uma situação que varia muito conforme o caso que a gente aborda. Se esse trabalhador tem familiares ou não, sim, a participação da família é muito importante, até para, quando resgatado, ter um local para ficar enquanto todas essas questões são resolvidas. O trabalhador, por exemplo, que foi resgatado na quinta-feira, embora tenha família em Corumbá, não tem condições de ficar na casa, que é pequena. Então esse empregador foi responsabilizado a mantê-lo em uma pensão até que as questões sejam resolvidas.
A situação varia caso a caso. O que não varia e, é um grande desafio para todos nós, é o que fazer para tentar dar uma nova chance para esses trabalhadores resgatados.
Nessa linha de atuação, o Ministério Público do Trabalho vem buscando uma aproximação com as assistências sociais dos municípios. Se em determinado município houve um resgate, nós trabalhamos com a assistência social após esse resgate para dois objetivos: o primeiro deles é, caso a gente consiga já a indenização e esse trabalhador venha a receber um volume importante de recursos, para que a assistência social o auxilie a bem aplicar esses recursos.
O segundo objetivo, talvez o mais importante, é que a assistência social interage, e nós também estamos trabalhando nesse segmento com setores como o Sistema S, para que possamos requalificar esse trabalhador, para que ele obtenha a renda de uma atividade diversa daquela na qual ele foi encontrado e, desse modo, rompa esse ciclo vicioso. Nós já tivemos situações de um mesmo trabalhador ser resgatado mais de uma vez, então, esse é um indício de que nós precisamos trabalhar melhor esse eixo do pós-resgate.
Como as instituições e a sociedade devem combater o trabalho escravo?
Nós temos duas linhas de atuação importantes. Uma, que aqueles que têm contato, ainda que seja por terceiros, com aquela realidade nos tragam a denúncia, mandem ao Ministério Público do Trabalho, à fiscalização do Trabalho essa denúncia, para que nós possamos apurar. E também nessa direção, o MPT está estreitando relações com instituições privadas e também da sociedade civil, exatamente para receber com maior volume essas notícias.
Nós estamos buscando aproximação com as entidades patronais também, principalmente do setor agropecuário, para fomentar boas práticas. É muito importante que se diga, fazer cerca, limpar pasto e plantar cana não é ilegal e é necessário, o que é ilegal é como isso vem sendo feito. Nós conversaremos com todos esses atores dos sindicatos patronais e também rurais para que essas boas práticas funcionem como uma forma preventiva.