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Sidrolandia

Por uma nova narrativa

A direita, no Brasil “pós-ideológico”, se faz representar pelo inefável Serra que, emblemático do Homo otarius, não é nada – apenas o pós-Lula. E Lula quem seria?

Redação de Noticia

23 de Abril de 2010 - 10:10

Um dos elementos mais significativos do já clássico Bem-vindo ao deserto do Real!, de  Slavoj Zizek (S.Paulo, Boitempo, 2003), é como o filósofo esloveno se serve da análise cinematográfica e da crítica da cultura para demonstrar como opera a ideologia hegemônica. Ele fundamenta seu ponto de vista ao observar que atualmente é extremamente difícil, até traumático, para o ser humano aceitar que sua vida não é apenas um processo estúpido de reprodução e busca do prazer, mas que ele está a serviço de um propósito transcendente. Em nosso universo “pós-ideológico” é assim que parece funcionar a ideologia: executamos nossos mandatos, incorporamos nossos papéis simbólicos sem admiti-los e “sem levá-los a sério”. A exemplo do sujeito que, apesar de funcionar como “pai”, vive se auto-ironizando, botando tal condição entre aspas.

O sucesso do desenho animado Shrek (Andrew Adamson e Vicky Jenson, 2001), diz ele, expressa perfeitamente esse funcionamento predominante da ideologia: é uma história de fadas padrão, na qual o herói e seu assistente engraçado saem em campo para derrotar o dragão e salvar a princesa. Mas a narrativa vem “enfeitada” (no sentido de adorno, ornamento) com “estranhamentos brechtianos” (que eu chamaria antes de “deslocamentos temporais”) – na igreja, a multidão que assiste ao casamento recebe instruções para reagir: “Aplausos!”, “Rir!”, “Silêncio!”, com a mesma falsa espontaneidade dum auditório de TV; desvios politicamente corretos (depois do beijo, não é o ogro quem se transforma num belo príncipe, mas a linda princesa que vira ogra); reversões inesperadas de personagens maus em bons (o dragão se revela fêmea e apaixonada pelo burrinho co-herói), tudo isso sem contar as gírias e referências a costumes e canções pop. 
 
Mas em vez festejar tais estranhamentos como potencialmente “subversivos”, como uma certa crítica se apressa em fazer, é preciso perceber o óbvio: por meio de todos esses deslocamentos, contou-se a mesma velha história. Em síntese, a verdadeira função dessas “subversões” é atualizar, ou seja, tornar relevante para a nossa época “pós-moderna” a história tradicional – e assim evitar que ela seja substituída por uma nova narrativa. Eis objetivamente o achado crítico do autor.

Zizek lembra que na antiga República Democrática Alemã era impossível uma pessoa combinar três características: fé ideológica, inteligência e honestidade. Ele diz: “Quem acreditava e era inteligente, não era honesto; quem acreditava e era honesto, não podia ser inteligente. E isso não se aplica à ideologia neoliberal? Quem finge levar a sério a ideologia liberal hegemônica não pode ser ao mesmo tempo inteligente e honesto: ou é estúpido ou um cínico corrompido”.

“Portanto, se me permitem uma alusão de mau gosto ao Homo sacer**  de Agamben, quero afirmar que o modo liberal dominante de subjetividade hoje é o Homo otarius: ao tentar manipular e explorar os outros, acaba sendo ele o verdadeiro explorado. Quando imaginamos estar zombando da ideologia dominante, estamos apenas aumentando seu controle sobre nós”.

O que efetivamente Zizek quer dizer é que a ideologia hegemônica, que domina a subjetividade e impede a construção de uma nova narrativa, tem como objetivo único a preservação do status quo, uma vez que o modelo atual de prosperidade capitalista recente não pode ser universalizado. E a exemplo ele cita George Kennam: “Os EUA têm 50% da riqueza do mundo e apenas 6,3% da população. Nessa situação, nossa principal tarefa no futuro é manter essa posição de disparidade. Para fazê-lo, temos que esquecer todo sentimentalismo, devemos deixar de pensar nos direitos humanos, na elevação dos padrões de vida e de democratização.”(citado por John Pilger em The New Rules of the World, 2002).

Um descarado egoísmo econômico, este é o divisor fundamental entre os que estão incluídos na esfera de (relativa) prosperidade econômica e os que dela estão excluídos.

Em suma, Homo sacer & Homo otarius. Zizek conclui, sombriamente: “O fato é que a democracia – o sistema parlamentar liberal-democrático estabelecido – já não está viva: o trágico é que a única força política que hoje está “viva” é a nova direita populista.” - representada no contexto europeu por Le Pen, Berlusconi e outros.

Direita que, no Brasil “pós-ideológico”, se faz representar pelo inefável Serra que, emblemático do Homo otarius, não é nada – apenas o pós-Lula. E Lula quem seria? Aquele que, a despeito de toda adversidade e até de toda teoria, estaria efetivamente construindo “uma nova narrativa”.